quinta-feira, 14 de junho de 2012

Lipovetsky e a expansão do consumo de luxo


“A classe média está em erosão, a Europa perdeu a sua centralidade económica e vivemos numa considerável crise de crença. Ao mesmo tempo, as marcas de luxo continuam, no essencial, a ser europeias. O primeiro grupo de luxo mundial, a Gucci, é francês e o terceiro, a LMVH, também. Quando se deu a crise do ‘subprime’, em 2008, é verdade que houve um abrandamento do mercado de luxo. Mas já na altura disse que não acreditava na crise do luxo. Um ano depois, os factos deram-me razão. O mercado de luxo não pára de crescer. É verdade que na Europa o mercado estagnou, mas a Europa são 100 milhões de habitantes. E foi isso que mudou. O mercado do luxo está em plena expansão noutras geografias. Porque há cada vez mais ricos no mundo.”

“Provavelmente, para a maioria dos países emergentes, como a China, o Brasil ou a Rússia, onde o mercado do luxo é bem sucedido, a compra de bens de luxo serve um objectivo de reconhecimento social. Social e materialmente, o objecto de luxo permite uma certa afirmação. Na Europa isso ainda acontece, com aquilo a que chamo o consumo demonstrativo. É o que em França apelidamos de ‘bling-bling’, ou novos-ricos. Mas há variantes. Por exemplo, o luxo emocional, ou experiencial, para os que querem um outro padrão de qualidade. Essa dimensão ainda não é dominante nos países emergentes, mas já é visível. As pessoas deslocam-se, informam-se e querem distinguir-se do que as faz parecer vulgares.”

“O luxo era extremamente minoritário, com fronteiras claras e intransponíveis entre os grupos sociais. Hoje, os adolescentes conhecem os bens de luxo de cor, viram-nos na televisão, no cinema e nas revistas, e querem beneficiar desse acesso. O que antes era muito sectário alargou-se, e as pessoas têm hoje acesso, quanto mais não seja, ao sonho.”

“Num mundo hipermoderno há uma dimensão emocional no consumo de luxo. As pessoas não procuram apenas exibir um estatuto social. Querem também obter uma satisfação pessoal. Antigamente, quando um homem queria mostrar a sua riqueza, comprava um diamante à sua mulher, ou à sua amante. Mas hoje as mulheres ganham o seu próprio dinheiro e podem comprá-lo elas. Fazem-no para se exibirem? Também, mas sobretudo para criarem para si mesmas um momento de emoção e valorizarem a sua imagem.”

“Quando as pessoas escolhem gastar em três dias num SPA o que poderiam gastar numa semana, escolhem um momento de qualidade de vida extrema como forma de evasão. Não se trata de ostentação, nem de representação. É uma procura emocional de momentos que rompam com o quotidiano. O consumo está hoje por todo o lado e é praticado por toda a gente. Antigamente as pessoas cultivavam aquilo que comiam, hoje até as coisas mais básicas precisamos de comprar. O consumo banalizou-se, por exemplo através da publicidade – e, face a essa banalização, o luxo imprime a diferença do que é excepcional.”

“O luxo introduz uma dimensão de sonho no consumo, numa altura em que já não há grandes sonhos. Já não se acredita muito na ideia de paraíso, nem na ideia de revolução.”

“Não [há um limite para o luxo]. Olhe o exemplo de Dennis Tito, que pagou 22 milhões de euros para ir à lua. São momentos de experiência extrema, como quem decide atravessar o mar numa canoa. Isso também é um luxo. As pessoas têm a necessidade de sentir. O homem moderno não suporta viver sempre de forma igual. Antigamente sim, era a tradição. Mas hoje já não temos tradições. Se não existir, de tempos a tempos, algo que se distinga, fica-se com impressão de se estar viver uma vida pobre. Isso é distinto do luxo da ostentação social. Há aquilo a que chamo de luxo eterno. Não há sociedade sem luxo, mas o luxo tem uma história. (…) Não é o luxo social, religioso, pela glória do Senhor. Veja o caso de um casamento. É um luxo à medida de cada um: um vestido muito caro que só se usará, espera-se, uma vez; uma festa com os seus amigos, uma lua-de-mel... Isso não tem nada a ver com ostentação.”

“Dou-lhe um exemplo: a arte. É muito cara e é um objecto de luxo. Mas poderíamos aceitar uma sociedade sem arte? Quando vemos os preços a que os quadros são vendidos hoje, é escandaloso. A leitura moral do luxo parece-me incorrecta e, no entanto, não lhe podemos escapar. Há demasiado desperdício. Mas é a condição para que algo excepcional emerja. Na história do mundo, sem o luxo não teríamos os castelos, os palácios e as catedrais que compõem a beleza da humanidade. As duas ideias que estou a procurar opor (…) são as de luxo privado e luxo público. E este está em perda. É a escolha entre comprar um diamante ou uma mala Dior, e comparar com os romanos que, com o seu dinheiro, mandavam construir palácios. Eu não sou um moralista, mas o dinheiro também permite um luxo público. Olhe o caso de importantes marcas que criam fundações que são novos marcos arquitectónicos nas cidades. Não é tanto o luxo que se denuncia, mas antes um uso excessivamente privado, um novo-riquismo que não se transforma. Não se deve diabolizar o luxo.”

“O luxo privado tem a sua legitimidade. Se as pessoas ganham dinheiro, devem poder gastá-lo. A posição estritamente moral é demasiado fácil e não toca a realidade das coisas. O luxo existiu sempre e está hoje em plena expansão. Mas o ideal humano não é o de consumir,antes o de criar, partilhar, melhorar a vida. É preciso que as coisas encontrem o lugar justo. O consumo ganhou uma preponderância excessiva, e é isso que é preocupante. Vive-se na acumulação. Mesmo em crise, o consumo nunca acabará. O que há para o substituir? É por isso que não acredito numa crise do consumo, mas numa crise do consumidor imprudente.”

Gilles Lipovetsky, filósofo e sociólogo francês, teórico de hipermodernidade, entrevistado por Tiago Bartomoleu Costa, sobre o seu novo livro “Luxo Eterno”, no suplemento “Ípsilon”, “Público”, 01-06-2012

Nenhum comentário: