segunda-feira, 19 de março de 2012

O talento de Mário Zambujal entre whisky e meninas


“Numa insónia podemos ter um trabalho fantástico. Ainda esta noite tive uma, e como preciso de entregar um conto de Natal, acho que o fiz mentalmente. Só falta passar para o papel. Tenho muitas ideias durante a noite, enquanto não consigo dormir. Talvez tenha a ver com o facto de ter sido noctívago durante muitos anos. Fazia jornais até às quatro e cinco da manhã, só depois é que ia jantar. O problema é que a essa hora só há whisky e casas de meninas.”

“Acabava por cear nessas casas. No dia em que Carlos Lopes ganhou a medalha de prata nos Jogos Olímpicos, o director da revista "Flama" virou-se para mim e disse: ''Preciso de um texto teu, um daqueles malucos, mas preciso disso para amanhã de manhã.'' E lá fui eu ali para cave do Mundial, na Rua António Augusto Aguiar, cheio de fome. Cheguei lá, encontrei-o com outros amigos comuns e disse-lhe: ''Amanhã de manhã, tocas à campainha da porteira e pedes a chave do correio. Deixo-te lá a crónica, mas não me acordes.'' Comecei a escrever em guardanapos de papel uma coisa chamada "Esta Noite Choveu Prata". Um artigo feito entre as marotas da Cave, que passaram a noite a dizer "então querido, o que estás fazer?" Dois anos depois o texto, escrito num ambiente de pecado, estava nos livros do oitavo ano de escolaridade. Só faltava cheirar a whisky.”

“Gosto de me movimentar, raramente me fixo. Mudar de ambiente é quase uma necessidade. Isso aconteceu nos vários jornais onde trabalhei, apesar de nunca ter mudado por causa de algum conflito – os meus desentendimentos são escassos, normalmente acabam com "ficas na tua, eu fico na minha". Nunca me chateio mais do que isto. Mudar com frequência torna a vida mais intensa, rodeada de mais pessoas.”

“Nasci em Moura, vivi na Amareleja, em Beja e no Algarve, onde comecei por escrever uma crónica num jornal local. Também jogava futebol, mas era uma nulidade com o pé esquerdo. O treinador obrigava-me a jogar com uma sapatilha no pé direito e uma bota no outro, para ver se eu chutava com o esquerdo. Quando o correspondente de "A Bola" no Algarve adoeceu, eu fui substituí-lo. Os editores começaram a pedir-me mais coisas, até que, pela primeira vez na sua história, o jornal chamou um miserável correspondente da província para trabalhar em Lisboa, na redacção.”

“Os dois primeiros meses foram um desastre. O Carlos Pinhão levava-me para casa dele quase como se me tivesse adoptado. Mal sabia onde era a Rua do Ouro.”

“Eu odiava a palavra escritor – apesar de já ter livros suficientes – porque representa uma actividade permanente. Prefiro dizer autor. Na verdade, eu não queria escrever a "Crónica dos Bons Malandros", mas os meus amigos passavam a vida a insistir. Gostavam das minhas crónicas mais ou menos humoradas. (…) Tenho uma grande admiração por aqueles escritores que trabalham oito horas por dia, quase como se tivessem uma profissão burocrática. Eu sou capaz de trabalhar 16 horas em apenas um dia, mas também posso estar uma semana sem escrever uma linha. Faz parte da minha personalidade, não me violento muito no sentido de mudar, acho que não vale a pena.”

“Aceitei o convite [da RTP] às quatro da manhã numa casa chamada Hipopótamo, sentado à mesa com o Cordeiro do Vale, que era chefe do departamento desportivo da RTP. Ele tinha dois gurus que o estimavam muito, o Noronha Feio, que foi director-geral do Desporto, e o José Esteves, que escrevia na "A Bola". Quando ele lhes perguntou se sabiam de alguém com o perfil para o lugar [apresentador de um programa de desporto], ambos me recomendaram. ''Eu falo alentejano com sotaque algarvio'', dizia eu.”

“A televisão intimidava-me, não era o meu universo, nunca gostei muito dos holofotes, das câmaras, sentia-me um bocado desajustado. A pior coisa que há é um tipo fazer as coisas sem ter a convicção de que as pode fazer bem. E eu, no princípio, não tinha essa convicção.”
“Tento nunca dizer a expressão "no meu tempo". Este tempo também é o meu, mas sinto que as coisas vão ficando cada vez mais desumanizadas. Ainda escrevo os meus livros à mão. Dantes, nos intervalos do jornal, íamos comer uma sandes à dona Ermelinda. Agora é uma máquina que se está nas tintas se queremos manteiga ou alface. Mete-se lá a moeda e ela descarrega com ar de "toma lá isto e cala-te".”

“Era namoradeiro e tive pessoas muito interessantes. Aos meus 15 anos, ainda se vivia um tempo de profundo afastamento entre rapazes e raparigas. Mas essa dificuldade, de não poder tocar ou abordar, era superada nos bailes. Quando o conjunto começava a tocar, virava-me para aquela rapariga que eu conhecia mas com quem nunca falava e dizia-lhe: "A menina não quer dançar, pois não?" Nunca falhou. Bailes e bola sempre foi o meu mundo. Mais tarde, já em Lisboa, era capaz de sair do jornal às três da manhã e ir a Santarém beber um copo com uma senhora. No "Diário de Notícias" os estagiários ficavam à minha espera só para os levar para as boîtes. Se tivesse morrido nessa altura, o meu funeral ia estar cheio de porteiros, conhecia toda a gente."

Mário Zambujal, jornalista e escritor, actualmente com 76 anos, celebrados no último dia 5 de Março, numa entrevista ao jornal “i”, publicada em 16-10-2010 (Ler aqui na íntegra)

Um comentário:

Tomás Gonçalves disse...

Adorei esta referência a um mundo que tentei abraçar no meu início da vida jornalística, embora não fosse as casas das meninas, mas era a omelete, sugerida pelo Luís, que de degustava no "régulo". Depois... Assentei, casei, negócio mais calmos que me levaram à pacatez profissional e num homem de lugar fixo me tornei. Teria preferido o outro mundo... certamente que sim. Mas escolhi este. Cá estou. Mas gostei de lêr este bocado de texto. Obrigado Luís.